segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Curto diálogo entre apaixonados

- Você é bonito.
- Bonito é você, que faz-me lembrar minhas odisseias.
- Esses seus traços irregulares me seduzem, bem como seus lábios amadores.
- Sua alma é doce como favo de abelha e seu coração, cheio de sangue rosado.
- Quanta boniteza, vise!
- Seus olhos tem a cor do paraíso.
- E seu perfume, o gosto do mar…
- Teu nome lembra a voz das sereias
- Seus cabelos parecem desenhados com giz de cera colorido.
- Eu amo teu sorriso.
- Eu visto tua pele.
- Então amemos-nos.
- E que sejamos sempre um.

Meu breve encontro com Edmundo, Moleque Ordinário

Em Portugal, os famosos pubs se tornaram cada mais mais comuns e vulgarizados, de forma que a entrada de jovens era permitida, quase intimada. Estávamos entre duas vielas, próximas a uma porta de madeira que se fazia passagem para um mundo mais proibido, com bebidas alcóolicas e cortinas vermelhas. Logo avistamos um rapaz sentado naqueles bancos que giram. Era conhecido; chamava-se Edmundo e vivia o auge de sua puberdade, imagine só! Sabíamos que ele sentia impulsos sexuais e almejava satisfazer suas necessidades vitais, tais como possuir corpos alheios, entrelaçar línguas e essências - nada além dos conhecidos e comuns aspectos carnais -, pois uma vez sua mãe contou à minha que o pegara rezando para que belas donzelas se apaixonassem por ele e o fizessem descobrir a doçura do mundo, dessa forma, corpo-com-corpo. Sempre fôramos apaixonadas por ele - eu e minha prima -, por seus traços faciais, por seu cabelo bagunçado e até por seu desejo impaciente de se tornar adulto para fazer da vida o que achasse mais apropriado. Ele era bonito, mas tinha cara de moleque e um charme desajeitado, o que fazia com que as mulheres mais velhas mal o encarassem e preferissem os caras mais velhos, com barba, músculos e bafo de cerveja. De toda forma, entramos no pub e o observamos discretamente, sentadas a uns bons sete metros de distancia. Meninas como nós não eram tão bem vindas, pois bebiam apenas pequenas doses para impressionar os rapazes que também bebiam com essa finalidade; assim, ocupávamos muito espaço e pouco davam lucro. De toda forma, nos aproximamos, pedimos ao barmen uma bebida portuguesa cuja nome não lembro mais e subimos um pouco as nossas saias para que um pedaço das coxas aparacesse. Ela - a minha prima Lucinda - pediu licença e foi ao banheiro porque realmente precisava fazer xixi, deixando-me de frente para Edmundo.
Céus, os olhos dele pareciam claros mesmo sob a fraca iluminação daquele ambiente londrino. “Falo com ele? Fico sentada esperando? Deixo essa oportunidade escorrer entre meus dedos?”. Muitas possibilidades e perguntas encheram minha mente de forma urgente e desesperada. Eu não podia perder muito tempo pensando em minhas opções, pois a bexiga de minha prima logo se esvaziaria e seríamos duas novamente. Decidi estudá-lo por alguns instantes e percebi claramente seu olhar quase que faminto para os seios saltitantes do decote da moça bonita vestida como princesa. Eu não era muito dotada de corpo, tendo pequenos volumes onde vastos seios deveriam se encontrar e um traseiro regular, com pernas, braços e quadris também regulares, e obviamente não chegava aos pés de quem meu amor admirava, mas nem me importei. Levantei-me e abordei-o educadamente.
- Olá, Edmundo! Que coincidência encontrá-lo por aqui! Como vai?
- Muito bem, obrigado.
- Lembra-se de mim, certo? Anita…
- Lembro, sim.
- Hm, se importaria se eu apossasse-me dessa cadeira? Minha prima me deixou sozinha por um momento e eu realmente gostaria de sua companhia.
- Não, tudo bem, relaxa aí.
(um pouco de silêncio)
- E como vai a vida? Bebendo muito?
(risos constrangidos)
- Arrã. (pausa) - Me mostre teus seios.
(muitos risos constrangidos, um leve tom de indignação)
- Como é que é, rapaz?
- Conheço esse tipo de moça que chega com papo furado e sobe a aba da saia pra se fazer mulher. Mostra logo esses seios, se forem bonitos a gente se ama um bocado.
- Ah, seu moleque desprovido! Não fale desse jeito comigo!
- Eu falo como quiser. Ou tu mostras ou não o fazes, cacete. Não me amole pois tenho mais o que fazer.
- Ei, saiba que sou menina de respeito e nesse meu busto você jamais irá pôr os olhos! Que desencantador, que blasfêmia!
- Então por causa de que que tu seguras esse copo de bebida? Pra me impressionar, num é? Ah, menina, eu gosto de mulher boa, que bebe porque gosta da ardência da bebida e adora se mostrar um pouquinho, isso sim!
- Pois afogue-se nessas bebidas que nada me agradam e enfie esse papo promissor onde o sol não bate! Seu safado boboca!
Derramei o resto de bebida que existia no meu copo em sua calça, chamei por minha prima e dei de costas.
Safado boboca, esse tal de Edmundo!… Meu amor se desmanchou, o encontro teve fim. Que suas preces nunca fossem cumpridas e o desejo por corpos o consumisse de dentro pra fora. Assim amaldiçoei-o e fui-me embora.

domingo, 20 de novembro de 2011

Princesa,

eu não entendo como nasceu esse sentimento insano e traiçoeiro dentro de meu peito. São insuportáveis essas suas visitas, essas cartas que você me escreve com uma caligrafia tão única e bela. Nunca encontrei um “H” como o seu, tão delicado e cheio de voltas, nunca senti uma fragrância tão deliciosa como a que abriga as folhas de papel enviadas. Parece que seus dedos exalam perfume, que sua caneta é feita de rosas e a tinta, de sangue desse meu coração machucado que não sabe mais pulsar. Todo o contato que tenho com você, seja face-a-face ou por intermédio de meus sonhos urgentes é precioso, mas me causa uma dor inebriante. Por isso preciso de você aqui e agora, mas, ao mesmo tempo, a milhões de anos-luz. Consegue compreender?
Lembro-me claramente de tê-la avistado à beira-mar em um dia nublado. Eu sempre tive mania de deitar na areia e admirar as nuvens negras do céu nos dias de possíveis tempestades. Estávamos no outono, e tempestades no outono eram bastante incomuns, mas ela iria chegar e isto era um fato claro e irrefutável. Enquanto eu admirava a agitação clara e intensa do mar, percebi um semblante incomum e me senti automaticamente atraído, como se em você houvesse um ímã e eu fosse feito de metal. Você usava um vestido estampado e seus cabelos voavam, inquietos, açoitando-lhe a face. Mesmo tão distante, pude perceber que seus olhos gritavam a dor do coração e despejavam lágrimas sem parar. Aproximei-me, descalcei meus pés e pus-me a cantarolar uns recitais de poemas que havia escrito e decorado, sem pretensões de bancar o último romântico. Pouco tempo depois, você sorriu.
Agora estou aqui, escrevendo uma carta que provavelmente permanecerá trancada em minha gaveta até que eu crie coragem para enviá-la. A possibilidade da falta de reciprocidade do seu amor me tortura, e por ter certeza de que a certeza acabará com minhas forças patéticas, permaneço adiando o inevitável. Deixe-me deixar claro, límpido: você sorriu. É clichê conhecido que o sorriso é maquiagem mais bonita que uma mulher pode usar, mas não tenho como discordar; por trás de seus dentes ligeiramente tortos e de seus lábios feridos, eu vi uma poetisa, uma belíssima flor pronta para desabrochar. Você parecia tão perdida, e eu também não sabia onde estava, então percebi que podíamos servir como mapa um para o outro, e mergulhei nesse romance inesperado.
Sentimentos, emoções, amor… Bah. Antes de você aparecer, eu só os dedicava à lua, ao mar, aos seres quem guardavam poesia dentro de si e transbordavam uma essência deliciosa de sentir. Mas você sorriu, e aí…
Hoje sou um homem poeta doente de amor. Padeço solitário imerso em minhas próprias indecisões, no desespero das confirmações, no medo da prisão pelas decepções penosas e mortais. Hoje minha caligrafia é uma imitação falha da sua, uma tentativa de aproximação, de me fazer igualável ao ser que reside em seu corpo humano. Você é a moça mais bela que eu já vi, e isso também causou grandes impactos em minha mente. Suas madeixas cor de mel têm o tom perfeito, seus olhos castanhos esbanjam ingenuidade e doçura, o desenho de seu corpo parece o rascunho, o protótipo da perfeição feminina. E como se por fora não bastasse, aí dentro há uma senhorita adorável, aprendiz da arte da sedução, que sabe admirar os poemas frágeis que escrevo - perfeita para o amador que existe em mim.
Você me fez insano, esgotou minhas forças, exilou-me num abismo infinito, ainda que inconscientemente. Quando me concede sua amizade, mesmo que na forma mais pura possível, atira no coração decadente desse homem que te escreve. Quando adia o encontro de nossos lábios, arranca de mim um fio de esperança - e é nesses fios que enrolo minha vida desesperada.
Princesa, minha razão, dona do meu corpo, das minhas palavras, da minha respiração, eu te amo, e esse amor que te dedico, ainda que doentio, é muito, muito belo - não vê?
Por favor, por favor, me ame de volta. Eu imploro…

Um milhão de beijos, de afagos, de cheiros, de abraços cheios de ternura,
Seu Príncipe.

O que faço num pedaço de papel

Desenho ruas com meu giz branco até meus dedos pulsarem e meus olhos admirarem, satisfeitos, um pedaço de mundo particular, um pouco da transferência do meu imaginário para um cenário completa e excessivamente real. Eu rabisco umas flores-de-lótus e coloro com cores diversas, como se minha insanidade fosse colorida e a vida, menos preta-e-branca. Nomeio as ruas com belos codinomes (Princesa de lis, Negra-flor, Príncipe dos jardins encantados) e desenho pessoas sem olhos com largos sorrisos e dentes absurdamente tortos. Ouço muitos dizerem que minha planificação pessoal é um sonho acordado, uma forma que eu mesmo arranjei para sentir menos dor e aliviar frustrações infantis, mas eu tampo os ouvidos, pois são insuportáveis esses julgamentos alheios sobre o que penso, faço, deixo de fazer. Minha cidade é minha casa, meu abrigo indestrutível, e ninguém há destruí-lo, nem com a força das palavras. Ainda que a chuva manche os traços feitos de giz, não me importo, pois sinto prazer em reconstruir, talvez amadurecer algumas mobílias e acrescentar semáforos onde antes não havia tráfego. Permito que a chuva dance dentro do meu canto, pois ela é bela, pura, limpa e não machuca-me, diferentemente das silhuetas humanas que insistem em destruí-lo.
Sou o rei. Aqui, o mundo é todo bonitinho, as nuvens não têm o formato da dor, o sangue que corre nos lagos é o de corações, que tão cheios de amor, transbordam. Aqui, dentro dessa folha de papel - um pedaço mais comprido, feito tipo cartolina -, eu mergulho em meus rabiscos falhos, crio asas e voo junto com gaivotas. Depois deixo-as para trás e subo até o fim dos universos, renunciando a Terra e fitando-a a milhares de anos-luz, transmutando-me num grandioso e cegante raio de luz.
Aqui, eu literalmente viajo, gozo da pureza da minha própria personalidade e abandono, na forma mais linda e pura da desgraça, minha ostentosa existência.

Um bocado sobre ameixas

Eu nunca comi ameixas. Ouvi falar que é um fruto de árvore rosácea bem capcioso, intrigante, mas nunca cheguei a nenhuma conclusão. A ajuda que poderia ser-me concedida não existe, pois as pessoas divergem entre si: “É doce, leve, tem gosto de infância, de súplica de mãe!”, “Doce? É claro que não! Ameixa é um fruto amargo, amarguíssimo, com gosto de pecado, de amor mal degustado…” Assim, vejo-me só, diante do disperso véu do mistério das ameixas. Que sabor teria esse pedaço de vida comestível?…
Minha maluquice mascarada subitamente se anima com a ideia de refletir sobre as mesmas.
Eu sempre achei que, por ter a cor que tem (um roxo rosado, vermelho, bonito que só), a ameixa fosse cítrica e lembrasse o beijo que não foi roubado, o doce que, esquecido fora da geladeira, salgou. Que a fragrância assemelhava-se a chuva em dia nublado, talvez leite com canela, vento que sopra pesado em quem fita o invisível. E que ameixa também remetesse à poesia cantada por um beija-flor, que sem ter um fruto para saciar o desejo do sabor, prova das ameixas.
Se ele - o beija-flor - gostou ou não, eu não faço ideia; apenas sabe-se que ele comeu todas as ameixas que viu pela frente e depois recitou uns poemas bonitos à beça.
Mas me remetem a essência de tudo, a um tempo obsoleto cheio de simplicidade e alegrias banais, essas tais de ameixas. E também catucam minha frouxa sanidade, servindo de passa-tempo, concedendo-me um leque de ideias para mais um texto com pouco sentido - bem como todos os outros.
Mesmo com uma memória falha, lembro-me de ir à feira comprar frutas, de pôr as tangerinas na sacola e de observar, distante, as ameixas, como quem tem vontade de comprar mas antecede automaticamente - uma forma leve e inconsciente da própria consciência de burlar o encontro de boca, língua, saliva e ameixa.
Vez ou outra o pessoal da freira me oferecia uma ameixa de graça, para eu provar e pôr fim ao mistério bobo e infantil que abrigava mais um entre vários gostos.
Eu nunca aceitei, pois, sinceramente, prefiro permanecer dessa forma, criando e fantasiando cheiros e sabores existentes apenas numa horta fértil do meu próprio imaginário. Qual seria a graça das ameixas se eu as conhecesse? Qual seria a diversão dessa minha insanidade de refletir sobre as mesmas, se de seu fruto eu já houvesse degustado?
Não haveria graça alguma, diversão nenhuma, e esse texto tão falho nem chegaria perto de uma exímia existência…

A família miserável e meu doloroso fim

Sou Broa, pão de milho, e me despedaço na mesa do café da manhã de uma família miserável que só me tem para comer.
Não há por quê, pra quê mentir. A porca que guarda umas moedas sem valor chora sangue e na cidade não há espaço para a pobreza. O pai, que não consegue suprir as necessidades da casa, prossegue morrendo aos poucos, carregando todo o peso do mundo com os braços frágeis e fracos. A mãe respira, inspira, manda as crianças dormirem pra sarar a fome, mas Dona Fome prega os pés nos estômagos dos pequenos e não se cura, se não com comida. As crianças escutam a mãe, tentam dormir, fingem que o fazem, mas guardam em segredo o fato de que não conseguem, pois sentem uma ligeira e incômoda dor na barriga.
A comida sou eu, Broa, pedaço de comestível que afoga dores estomacais, que desperta os instintos humanos, que não tem fome.
Agora eu estou no centro de uma mesinha feita de madeira, que têm dois pés quebrados e por isso me balança; a mesa não deve valer mais do que o ar que a família respira, nesse lugar onde quem tem dinheiro vive e quem não tem, morre. Seus nomes eu protejo em codinomes, apesar de que também nada valem. A utilidade é que assim o episódio torna-se um pouco mais irreal e, consequentemente, menos dilacerante.
Todas as cinco figuras humanas me circulam. Sinto o peso de seus olhos arregalados, ouço os pobres corações pulsando, as mentes tontas de vontade. Sei que sou o último pedaço de pão, sei que todos me desejam como nada mais e considero-me de suma importância, precioso, valioso, quase igualável a restos de diamante. Se eu tivesse boca, sorriria…
No meio disso tudo, há um fato irrefutável: essa família pode pôr a culpa de sua situação miserável em outras famílias que ostentam um luxo desnecessário, que vivem como nobres, vestindo trajes majestosos e comendo galinha assada nas principais refeições. Essa família pode gritar toda a sua fúria, pode perguntar à Deus porque há tanta injustiça e desigualdade no mundo, pode enfiar uma estaca nos corações uns dos outros e preferir um encontro rápido com a Morte ao desfalecimento lento e caprichoso de seus corpos apáticos. Mas não o faz. Ao invés disso, as cinco criaturas vistas como vergonhosas, causadoras da desgraça e proclamadoras da infâmia apenas choram em silêncio, às vezes, com os braços entrelaçados, e rezam.
Por que, Meu Deus?
Apesar de ser apenas Broa e não ter necessidades vitais como os seres humanos, sei que a fome causa dor, pois a vejo nos olhos semicerrados de quem a sente. Mesmo como Broa, eu tenho dó, pois sou capaz de enxergar a bondade existente nos corações dessas pessoas que não almejam ventura, apenas a vida, e é uma bondade tão genuína, tão bonita!… Apesar da minha incapacidade de mover, minha vontade é de criar asas e voar para bem longe, pois sei que a situação da família nada vai mudar, e sendo assim, quero esquecê-la para fingir que no mundo há apenas prosperidade. Se eu tivesse olhos, choraria…
A mãe é a primeira a agir. Eu não sou muito grande, já que sou apenas um pedaço e não o pão inteiro, mas ela consegue me partir de em três fatias. E eu não entendo, fico ligeiramente confuso; se são cinco pessoas, como três pedaços satisfarão todas? Então observo sem me mover, pois também não tenho braços ou pernas: a mãe pega cada um dos pedaços e entrega aos seus filhos. Olha para o marido, o abraça.
E chora.
Eu sinto as pequenas mãos das crianças me segurarem com força e desejo, sou mordido, mastigado e engulido pelas mesmas, até que de mim não sobram nem migalhas. Elas me aproveitam, saboreiam, eternizam o ato de comer. Olham para os pais, percebem as lágrimas nas faces deles e escutam o som de estômagos roncando.
Eu já não existo mais e não sei como o faço, apenas sinto: as crianças também choram.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Falo-te, suicida

  Eu gosto de olhar pro céu. Deixa-me feliz, mais leve, dá-me a impressão de  que estou sob um véu gigantesco e que depois dele há um outro mundo, cheio de flores, amores e gosto de marisia. É tão bonito, tão majestoso, que dá vontade de mergulhar bem fundo, de molhar os cabelos na lua que reflete no mar, mesmo sem saber onde é seu paradeiro. O céu, assim, sobre meus olhos castanhos, parece o vestido da Morte - só que ele é vida, é escuridão e luz ao mesmo tempo, tudo junto. Também as estrelas que nele dormem são belas; as tais “namoradas dos vaga-lumes” (como gosto de chamar) muitas vezes me dão vontade de sorrir, noutras de chorar lágrimas doces. Não sei se é assim pra todo mundo ou se minh’alma faz parte dum corpo hipersensível que vê coisa onde ninguém mais vê. É que eu ando sempre muito cheia, cheia a ponto do meu corpo pedir preu deixá-lo transbordar. Mas não quero, num posso, porque essas gotas d’água molham o que tá seco, fazem sofrer cada canto do meu corpo, transformam o vazio num peso imenso que caí sob meu coração fraco, fraco. Aí eu engulo, deixo a dor dominar minha garganta, mantenho seus nós bem apertados. E quando fica tudo muito difícil, insuportável em todos os sentidos, olho pro céu, peço ajuda às nuvens, às cores que não sei distinguir, e tomo um bom café, porque o calor dele alivia a tal dor aprisionada na goela.
  Hoje toda palavra bonita que canto soa artificial, e a necessidade de comprar flores para dar de presente a mim mesma só cresce. Meu corpo efêmero suporta apenas o peso dos livros, da complexidade das canções, do céu. Torno-me cada dia mais amante do outro lado do mundo e menos pertencente a esse que vivo. Ainda vejo todas as coisas quando fecho os olhos, sinto melodias quando não há som, coloro com branco telas pretas, desenho o que não existe - e continuo sem saber o que sinto, quem sou eu, sobre as coisas que gosto. A única certeza que carrego é a de que sou ávida de amor - mas seria o amor bom? É só mais uma incerteza. Tô com vontade de gritar segredos de liquidificador, de pôr um disco vinil pra tocar e dormir sem pretensão de acordar. Tô com vontade de contar as estrelas, de trocar a estação, de arrancar da parede da memória o que se fez quadro mal pintado. Tô cheia das vontades, e essas vontades me sufocam…
  Tristeza tá comigo, lá em casa. Ironicamente, de uns tempos pra cá, tenho sentido-me muitíssimo só. Não recebo mais respostas pras cartas que escrevo, não ouço mais o soar da campainha e sou olhada com caras feias porque carrego comigo essa mania de ver o mundo de forma diferente. Acontece que não posso evitar, pois mora em mim uma pequena aprendiz de poetisa, teimosa que só, que se recusa a fechar as portas do meu coração pra mergulhar na ignorância e na falta de percepção que domina tudo e todos os cantos - até os becos sem saída. Ah, eu tento não me importar com os traços que me encaram, pois nada posso fazer por aqueles que escolhem ternos, esmaltes, e televisão, se não lamentar. Mas me importo, já que também nasci do ventre, também sou feita de carne e osso, e sentimentos me dominam como dominam o universo. Se choro? Choro nada. Apenas encolho-me num pedaço do mundo, reservo-me à minha loucura sã e trato de escrever, de pintar, de dançar, de servir à arte, pois ela é o alimento mais poderoso que há e fortalece-me como nada mais.
  Uma pergunta que te faço: tu comes arte, meu filho? Devias, ainda mais se tu sabes como é sentir um aperto sem raiz no coração, como é não entender o que se passa dentro de ti mesmo. Não gosto de ser direta assim, pois aí a poesia se torna vã, mas não vou enrolar: a triste verdade é que tu jogas nesse meu time abandonado, sem técnico, sem manual de instruções - e estás completamente perdido. Mas fiques calmo, eu te atento: não desistas, olhe pra cima que tu tens tudo o que precisas bem alí, metamorfoseado nas coisas mais puras, simples e bonitas de se ver. E vejas, tem uma refeição inteira aí, na tua frente, querendo ser devorada, implorando pela fome!
  Agora, sem mais nem menos, um desejo te confesso: eu quero me casar com o céu, beijá-lo, ouvi-lo contar histórias de pessoas cuja nomes ambos desconhecemos, perguntá-lo qual é o meu problema e porque o mundo não pode amar poesia, também. Eu quero juntar-me à ele e virar a senhora da noite, sem pretensões de grandeza, apenas para poder pôr estrelas sobre poetas que precisam de inspiração, sobre compositores que ainda não encontraram a melodia perfeita. Ah, almejo-o lendo meus poemas, incorporando-os nas nuvens, abraçando-me forte, contando conchas comigo à beira-mar. Só não quero saber de seus segredos, pois que graça há na ausência de mistério? O amor que o dedico é quase enlurado, e espero que possa me salvar desse abismo em que me lanço.
  E ainda que eu diga que resisto ao choro, minto, ponho máscaras na frente do próprio rosto marcado pelas lágrimas que não param de rolar. Escondo esse fato como se fosse minha fraqueza, mas agora vejo que é coisa admirável e devo minha vida à ele. Pois se não chorasse, aí sim não aguentaria, já que meu corpo me limita a grandes extensões e o que me compõe é tudo, menos pequeno.
  Não sou de todo suicida…

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Como Mar e Lua


 Estavam sentados nuns bancos meio bambos tomando um açaí daqueles bem gostosos, gelados e doces. A Noite já havia saído, e trajada com sua manta negra favorita (volumosa e cheia de brilhantes), se fazia infinita e misteriosa lá no céu. O menino e a menina amavam açaí e não hesitavam em prová-lo o tempo todo, pois o gosto era bom, e muito bem eles faziam ao aproveitar as coisas boas da vida, coisas que davam prazer, felicidade. Eles olhavam pra noite como quem queriam estar no lugar dela, vendo o mundo inteirinho, todas as pessoas, seus encontros, seus temores, tudo. A verdade é que eles queriam mesmo, pois imagine só! Lá de cima dá pra fazer milagre, chorar chuva, ver a lua refletida no mar. E o mar, sob a Noite, ficava tão cheio de lua que parecia guardá-la dentro de suas águas negras e profundas. Era belíssimo, tal como o mais fantástico espetáculo dos deuses, que dava aos moços uma vontade de levantar e aplaudir; o que eles de fato faziam, sem pestanejar.
 O casal dedicava seu amor à poesia, que protegida no açaí que suas bocas degustavam com apreciação, na amplitude da Noite, em seus cabelos, nos brilhantes dos trajes que estrelavam o céu e nos seixos presos à beira-mar, davam sentido à vida que os mesmos insistiam em utilizar. O menino e a menina, espertos e safos, de bobos não tinham nada; levavam consigo a certeza de que a vida havia de ser tudo, menos fácil, mas ainda assim sorriam para ela e aceitavam o que ela tinha para oferecer com todo o bom grado. E quando faziam poesia, era até meio gozada a cena que eles pintavam com a mente: a menina, ela mesma usando as roupas da Noite, fazendo chover sobre os que sentem calor, aliviando as dores dos mais secos, consolando os desprotegidos. O rapaz, a mesma menina dividindo um açaí com ele, os dois usando a mesma colher, sob o luar da cidade que se desfazia, invadida tamanho amor.
 Por falar nos quadros pintados, em suas respectivas mentes havia vários deles, de todos os tamanhos, com cores que ninguém conhecia (tampouco sabia o nome), com imagens que de concretas nada tinham e um pedaço da criatividade que neles mal cabia. Eles eram ávidos da arte que coloria suas vidas pretas e brancas e gostavam de personificar as mais diversas metáforas neles mesmos. E pois depois de tanta semelhança, inúmeras diferenças também tinham; enquanto os cabelos dela caíam curtos e lisos em seus ombros, os dele eram longos e cacheados, como dos anjos das histórias que eles mesmos escreviam. Ela insistia em defender os frutos e ele o trabalho, ela as flores e ele as árvores, uma as nuvens, o outro a limpidez. E assim, com suas semelhanças e diferenças, se reuniam nos dias de Noite bonita e tomavam um açaí grandão, bem delicioso.
 Ninguém sabia que eles eram tão grandes que seus corpos mal assistiam a si mesmos. E eles mantinham a mania de desejar ser a Noite para verem a lua dentro do mar e parecerem estar pertinho, quase como se pudesse capturar a mesma com próprias mãos...
 O menino e a menina muito tinham para contar. "Como prosavam com tamanha facilidade? Como construíam, com essa aptidão inigualável, composições frásicas tão erradas e tão poéticas?", a Noite se perguntava, temendo a resposta deles. A verdade é que ela queria escrever também, e almejava transformar sua alma numa apologia à arte e à beleza das coisas simplórias - tal como a do casal.
 Agora estavam sentado nas cadeiras de madeira e duas das pernas delas eram tortas. O tal açaí quase que acabava, só que tava tudo bem, pois depois eles iriam cada um pro seu canto rabiscar uns versos e dormiriam inebriados, ainda imersos na sensibilidade da fantasia que o mundo os proporcionava. Poeta e poetisa, eles eram como mar e lua e viviam um amor enluarado - mas não sabiam. Juntos, descobriram que para dar profundidade e boniteza aos seus rascunhos, não precisavam usar todas as vírgulas, as palavras mais formosas nem escrever tudo certinho, assim, como que tirado de gramática, mas pôr um pouco da sutileza que formavam suas almas tão transbordantes. Imagine, o casalzinho de moços não tinha muito mas tinha tudo, e às vezes, mesmo a Noite, com toda a sua grandeza admirável, despia-se e invejava-os de pertinho.